Triagem




Na porta estão colados dois avisos: "Proibido fotografar ou colher imagens dinâmicas ou estáticas" e "Informação sobre custos dos cuidados de saúde".
Não posso fotografar, mas posso relatar. Os custos são mais que muitos e veem-se de diferentes maneiras: gemidos, tremuras, tosse, respiração, olhar, expressão ou palavras.
De fora da sala, ouvem-se os doentes que estão deitados em macas e demonstram o que lhes custa estar ali.
Há um ecrã de televisão ligado num canal generalista, com som quase nulo. O objetivo deve ser distrair ou disfarçar um pouco o tempo que passa, mas ninguém parece querer saber deste aparelho.

Todos se encontram à espera de um atendimento que os faça sentir melhor. Entra-se e vêem-se expressões pouco decifráveis. Todos têm "cara de caso" e cada um tem o seu problema. Também as pessoas são diferentes umas das outras, afinal as doenças ou problemas não escolhem personalidades simpáticas ou antipáticas, tímidas ou extravagantes nem pessoas velhas ou novas, altas ou baixas.

Sento-me e espero.
Ao meu lado está uma rapariga sentada de lado na cadeira, com a cara sempre na mesma direção. O que terá ela? Será grave? Ou apenas um problema ocasional? Os olhos não se veem, estão por baixo de uns grandes óculos escuros num lugar onde os únicos raios que existem são os da única lâmpada ligada entre quatro que existem na sala.
As chamadas são constantes e a cada novo ruído todos se concentram, esperançados em ouvir o seu nome a ser evocado.
Na sala retangular, as cadeiras formam um U e dentro da letra criada há mais filas de cadeiras viradas para o corredor.
Estou sentada num dos lados do U. Do outro lado, mesmo na ponta da letra, está uma velhinha, vestida de escuro, de cabelos brancos e de face bastante enrugada, resultado dos anos de vida. O filho de meia idade, careca e alto anda de um lado para o outro e reclama revoltado. Desabafa em voz alta um certo complexo e queixa-se repetidamente que tem que ser ele a acompanhá-la, porque a "querida filha não pode". O que parecia ser um complexo de inferioridade ganha outras proporções e começa a acusar a velhinha de gostar de passear e de andar sempre a fazer exames: "deve pensar que não tenho mais nada para fazer do que andar a passear consigo de cima para baixo".
A revolta torna-se cada vez maior e o tom de voz mais elevado. Começo-me a sentir revoltada por várias razões. Não conheço os problemas familiares deles, nem tampouco se a senhora tem algo grave ou não, mas começo a sentir-me revoltada pelo modo como fala e trata quem lhe deu a vida.
Além disso, está a desrespeitar todas as pessoas que aqui esperam por melhores momentos.
A senhora pouco falava, mas ainda lhe disse para ele ir à vida dele que ela depois pediria na receção para a deixarem telefonar a alguém.
O homem parecia não a ouvir e continua de um lado para o outro a arranjar pretextos para expor a sua egoísta revolta.

Entretanto, chega um senhor com alguma idade, acompanhado pela filha que o ajuda a caminhar e lhe segura na algália. Sentam-se na primeira fila central ao pé de uma senhora que esperava notícias dele e explicam-lhe o que o médico disse. Têm que esperar mais.

Passado algum tempo, chega uma funcionária com uma sopa para este doente.
O homem que andava de um lado para o outro e barafustava contra tudo, vê e pergunta se para a mãe dele não há. A auxiliar explica que aquele doente já aqui está há muitas horas e a sopa foi servida por orientação do médico. A mãe dele ainda não tinha sido atendida.
Depois de tanto reclamar, sai e alivia um pouco o espaço e a mãe, dando-lhe um pouco de sossego.

Outro filho critica o sistema, o pai terá que fazer exames e por este andar passam lá o dia. Começam os comentários, como se de uma competição se tratasse:

- São duas da tarde e o meu pai está aqui desde as seis da manhã.

- Está ali uma senhora numa maca desde a meia noite.


- Eu cheguei agora, mas já ontem estive aqui o dia todo e por este andar hoje estou outra vez.


Com as chamadas os pacientes saem e voltam. Ora os chamam para o gabinete 1, ora à sala de tratamentos, ora aos exames... Pelo meio, voltam à sala e esperam uma nova chamada.
É visível o amor que tem pelo neto e como sentiu os eu apoio.

Uma senhora lê em voz alta a mensagem de um neto, que deveria ter ainda tenra idade.
- Olhe pai, a mensagem do Diogo: "cheguei agora a casa. tenho pena de não estar aí para dar apoio ao avô, para ele ficar mais forte. Um beijinho grande para ele"
O avô sorri e com tom carinhoso diz:
-Coitadinho.

Entra uma senhora de alguma idade, magrinha com roupa em tons de castanho e bege, camisola de lã, saia de lã, meias de lã... Senta-se e começa a querer deitar-se nos bancos do lado que se encontravam sem ninguém, apenas ocupados por os casaco da senhora que acompanha o pai, que ao se aperceber da intenção da nova paciente lhe pergunta se quer que os retire. Ela responde que precisa de se deitar, está muito estonteada. Preocupada, a mulher acaba por lhe oferecer o casaco para ela apoiar a cabeça. A recém-chegada deita-se, ocupando dois ou três bancos. Levanta-se novamente. Não consegue encontrar nenhuma posição confortável. A outra senhora, mostra-se preocupada e pergunta-lhe se já comeu hoje. Responde que já comeu o caldo e entristecida queixa-se da falta de outro tipo de alimentação:

- Para que são os netos? E os filhos? Ninguém quer saber... Fui eu que os criei! -queixa-se com voz trémula, e continua - Ando mal e há vários dias que peço para me trazerem cá, mas ninguém quer saber. Veio agora o meu neto que me deixou ali à porta. Já nada é como antes.


Talvez tenha razão. O desrespeito e a insensibilidade perante quem lhe deu a vida estava ali chapada na cara de todos.

Ouvimos falar que antigamente os tempos eram outros e as pessoas até eram mais rudes e menos carinhosas.
E hoje? São como? Mais carinhosas?
Mesmo quando só veem o próprio umbigo e se esquecem que ele já esteve ligado a outro?

O tempo passa e a sala está cada vez mais cheia.